Dois (ou mais…) dedos de conversa com Genuíno Madruga

Nesta conversa com Genuíno Madruga, e porque a vertente mais visível da história da viagem deste marinheiro estará já mais divulgada e melhor explorada pelos muitos jornalistas que o entrevistaram, é nossa intenção (e nossa grande curiosidade pessoal…) tentar conhecê-lo melhor (e mais informalmente…).

Importa perceber que homem está por detrás do marinheiro que se sentiu capaz de concretizar um sonho/desafio que exige níveis de força de vontade, de autoconfiança, perseverança e de capacidade de sofrimento que muito poucos de nós tem e que ainda menos são capazes de aplicar na vida, sobretudo porque estamos falando de um projecto de grande complexidade e que o Genuíno estruturou quase sempre sozinho, sem “comissões”, “assessorias” ou “conferências”…

Parte da resposta terá já sido claramente dada na mensagem que Genuíno Madruga lançou às muitas pessoas que o esperavam, e que direccionou especialmente aos muitos jovens que o ouviam quando chegou, e que, pela importância do seu conteúdo, volto a lembrar aqui: “Sonhem, definam objectivos, acreditem que são capazes, sacrifiquem-se, trabalhem muito e só assim serão capazes de concretizar aquilo com que sonharam”.

Para além disto vamos ainda tentar abordar alguns aspectos técnicos e materiais relacionados com a viagem que possam ser úteis ou interessantes para os leitores desta revista enquanto amantes destas coisas de iates, velas e de mar e deixar aqui um ou duas das “histórias” que aconteceram dentro da grande história da viagem de Genuíno Madruga por esses mares e portos que ele durante dois anos cruzou e que ele queira partilhar connosco.

Em jeito de apresentação, uma sucinta nota biográfica sobre o nosso interlocutor. De nome completo Genuíno Alexandre Madruga, este marinheiro nasceu a 09 de Dezembro de 1950 em São João, na Ilha do Pico.

Sem significativos antecedentes familiares que o ligassem ao mar (apenas o avô materno gostava de pescar), Genuíno Madruga teve o seu primeiro contacto com a vela ainda moço, nos “Lusitos” da então Escola da Mocidade Portuguesa.

Optou desde muito novo pela pesca como profissão onde tem tido, mercê da sua capacidade de trabalho, determinação e abertura à inovação um exemplo de sucesso nesta actividade.

Mas vamos então à nossa conversa, tentando conhecer um pouco mais o Genuíno “Homem” e algumas das peripécias da sua viagem…

 

-Ouvi, na Conferência de Imprensa à sua chegada, que tinha começado a sonhar com a viagem ao contactar com os estrangeiros que nos visitavam. Quando sentiu que a concretizaria um dia?

.-Comecei a pensar que gostaria de fazer um dia uma grande viagem aí para os finais dos anos sessenta. Pensava que, se os “aventureiros” que por cá passavam o faziam, então eu também seria capaz de o fazer. A grande dificuldade que se me colocava nessa altura era conseguir os meios para poder fazê-lo. Nesse tempo não havia dinheiro. Eu tinha na altura uma pequena embarcação de pesca, com 14 pés, que tinha adquirido antes de ir para a tropa, quando tinha 16 anos. Foi a primeira embarcação de pesca profissional que tive… mas já ia pensando em fazer um dia uma grande viagem: ia falando com as pessoas, ia colhendo informações nas conversas que ia tendo com os estrangeiros e ia começando a desejar fazer um dia uma grande viagem, como eles…

- Ainda não sonhava dar a volta ao mundo?

-Não, ainda era tudo muito desconhecido para mim nessa altura e, como te disse atrás, não havia meios económicos para pensar a sério em aventuras dessas...

-Quando se sentiu então determinado a “voar para longe”?

-Terá sido em 1975 o momento em que a ideia de um dia fazer uma grande viagem passou de um desejo mais ou menos abstracto para um objectivo de vida concreto. Aconteceu com a passagem pela Horta de um grande homem, que me marcou, Marcel Bardiau.

A primeira coisa que me impressionou na altura foi o barco dele: naquela época o aço inox era um material relativamente raro por estas paragens e qual não foi o meu espanto quando vi chegar um iate grande (tinha 15 metros), totalmente construído em aço inox. Até o ferro e a corrente do mesmo eram em inox e o próprio barco chamava-se “Inox”...

Como já nessa altura sabia um pouco de francês, procurei logo fazer perguntas, de forma a saber algo mais acerca daquele barco. Foi bastante difícil, até porque o Marcel não era de modo nenhum acessível, não sendo fácil conversar com ele…

De qualquer modo, lá consegui satisfazer as minhas curiosidades acerca do barco e do Marcel e ambos me impressionaram e me fizeram ficar, aí sim, com a certeza de um dia fazer uma viagem como eles…

- Profissionalmente, como lhe corria a vida nessa altura?

-Quando cheguei da tropa, a minha primeira lancha estava em mau estado. Nessa altura ainda a arranjei e pesquei com ela, mas foi por pouco tempo. Vendi-a e comprei outra um pouco maior, a “Nanda”, já com 18 pés e com um motor a gasóleo de nove cavalos. Foi já com ela que fui para sítios onde julgo que nenhuma outra embarcação de boca aberta tinha estado. Ia sozinho para o banco Açores, para o Condor…enfim para lugares menos acessíveis e onde sabia que havia peixe.

-Já nessa altura ia sozinho para longe. O Genuíno considera-se, por natureza, um solitário?

-Acho que não, gosto de estar com as pessoas e de falar e trabalhar com elas… o que acontecia era que se tinha alguém que pescasse comigo, tudo bem, mas se não houvesse ninguém, nunca ficava parado por causa disso, pois tinha sempre tudo preparado de modo a me poder desenrascar sozinho.

Como ia normalmente para bastante longe e a lancha não dava mais que cinco nós, não era fácil arranjar companhia…A respeito disso lembro-me que, no Verão, encontrava muitas vezes as traineiras do atum lá por fora e, como era quase tudo gente conhecida, apanhava reboque para regressar, o que era óptimo, porque me punha muito mais rapidamente cá dentro…

-Para ir para tão longe, e numa altura em que as possibilidades de comunicação eram poucas, tinha de ter um motor fiável e, certamente alguns conhecimentos de mecânica, pois não se vem a remos do Açores…

-É evidente, meu amigo…eu tinha sempre a bordo as peças e ferramentas que julgava fundamentais para resolver os meus problemas no mar. E eles até aconteceram, mas de qualquer maneira, nunca fiquei mal, pois consegui sempre chegar a terra com aquela lancha e aquele motor…

-E quanto a instrumentos de navegação e ajuda à pesca?

-Apenas uma agulha, daquelas que se usavam nas canoas baleeiras, dentro de uma caixinha de madeira e, para pescar, uma sonda que foi a primeira a aparecer por estas bandas para barcos de pesca de boca aberta. Tratava-se de um modelo com disco que alcançava as 320 braças e funcionava a pilhas ou a bateria. Como com as pilhas saia muito caro, arranjei uma pequena bateria a 12 volts que ia recarregando em terra pois ainda estávamos nos tempos dos motores de arranque a manivela…não havia alternadores nem baterias a bordo.

-Foi sempre evoluindo muito rapidamente na actividade piscatória e, de certo modo, revolucionando-a até, tendo sido “pioneiro” na evolução técnica e profissional deste sector por estas bandas. Adquiriu a primeira embarcação cabinada, já com uma autonomia significativa e com capacidade de conservação do pescado a bordo, o que alterava completamente, em termos de condições e rentabilização do trabalho, aquilo que existia até então por estas bandas. Falemos um pouco sobre isso…

-Eu queria realmente evoluir. Já ouvia falar do que se fazia nesta actividade no estrangeiro, já tinha algumas provas dadas acerca da minha capacidade de trabalho. Tinha também na cabeça algumas ideias, bem consolidadas pela minha experiência, sobre o tipo e características que deveria ter um barco para pescar em condições aqui nos Açores.

Com o apoio da Secretaria Regional da Agricultura e Pescas fui então à procura, em França, Espanha e Inglaterra, do barco que se adaptasse aquilo que eu queria.

Encontrei em Inglaterra a embarcação que considerei mais adequada e assim adquiri a “Guernica”, um barco de 38 pés, já com beliches a bordo, porão isotérmico, equipamento electrónico e, enfim, com as condições de trabalho, de funcionalidade e até mesmo de segurança que não podem existir nos barcos de boca aberta. Isso dava-nos possibilidades de trabalho que nada tinham a ver com as que tínhamos anteriormente.

Só a título de exemplo, passámos a poder trabalhar mais descansados, quase sem paragens por causa do mau tempo dada a segurança do barco e, se antes tínhamos de vir “a correr” para terra mesmo que estivéssemos a pescar bem para que o peixe não se estragasse, agora podíamos ficar vários dias seguidos no mar e só então vir descarregar o peixe, pois que com o porão isotérmico estava assegurada, em óptimas condições, a conservação do pescado…

-Soube que, ao ler um artigo publicado num jornal local pouco antes da sua chegada cá da autoria do Dr. Eugénio Leal (Director Regional das Pescas, na altura da aquisição da “Guernica”), o Genuíno o tinha surpreendido (e ao dono do estaleiro onde ela foi construída) ao indicar várias adaptações e melhorias que foram mesmo depois adoptadas pelo estaleiro nos barcos que construiu posteriormente. Conte-nos um pouco dessa história.

-É verdade. Ao analisar o barco e porque, face à minha experiência, tinha já algumas ideias mais ou menos estudadas sobre o que queria, constatei que algumas coisas poderiam ser melhoradas e indiquei algumas adaptações em termos de organização a bordo e de funcionalidade na faina. Quase todas elas se confirmaram positivas, e algumas das soluções que apresentei passaram mesmo a ser utilizadas nos barcos que foram construídos por aquele estaleiro depois da “Guernica”….

-E foi assim, com muito trabalho e persistência, que foi melhorando a sua condição económica e criando progressivamente as condições para realizar o tal sonho…e começou a procurar um barco.

-Exacto. Já ia conseguindo arranjar algum dinheiro e já sabia, com muita certeza que um dia qualquer ia comprar o meu iate…

Só que um iate com condições para fazer viagens oceânicas custa muito dinheiro e apenas em 1994 é que constatei que já tinha condições financeiras para me meter nisso.

Comecei então a procurar: primeiro fui aos Estados Unidos, ainda em 94, investigar o que havia por lá no mercado de segunda mão pois que, para comprar novo ainda não era fácil. Vi muita coisa, visitei várias feiras, mas acabei por chegar à conclusão que o melhor seria comprar um barco novo. Aquilo que havia em segunda mão ou era muito barato mas também de muito baixa qualidade. Os barcos com qualidade e quase novos estavam muito caros e já feitos e equipados “à mão do dono”, e eu queria poder equipar um barco para uma viagem grande à minha própria maneira.

-Virou-se então para os barcos novos…

-Comecei então a procurar uma embarcação nova e também vi muita coisa. Porque escolhi aquele e não outro? Pela razão quase sempre mais decisiva: O preço! Cheguei à conclusão que, em termos de relação preço/qualidade, aquele modelo da Bavária era a melhor escolha possível para o dinheiro que tinha disponível.

Relativamente aos equipamentos, e aí estava bem seguro do que fazia dada a minha profissão e até ao facto de já possuir alguns deles.

- O “Hemingway” correspondeu então ás suas expectativas? Quais as vantagens e fragilidades que encontrou nele?

-Quanto ao casco em si, não tenho nada a apontar. Navegou razoavelmente bem em todas as condições de tempo e vento com que nos confrontámos nesta viagem, e apanhámos de quase tudo.

O único senão que se coloca no Bavária é na aparelhação, no que respeita ao mastro e ás velas…

 Realmente parece um pouco frágil ao nível dos brandais e do mastro…

-Não só parece, mas é mesmo frágil. Quando comprei o barco ainda coloquei algumas dúvidas sobre isso e o que me deram a entender é que eu não percebia nada daquilo… Todavia o que me aconteceu veio dar-me razão. Tanto que agora, quando coloquei o mastro novo, já fiz algumas alterações…

- Ainda não tive oportunidade de o ir “bisbilhotar”, mas que tipo de reforço fez? Aumentou o diâmetro dos brandais?

-Não, fiz diferente: dupliquei o sistema de brandais. Agora, se ele sair dali, não vai sozinho, vai levar algum bocado do barco com ele! E ainda penso em reforçar-lhe mais os apoios…

Vou pensar melhor nisso quando puser o barco em terra no Inverno…Agora há uma ensinamento do Marcel Bardiau que tive em conta quando escolhi este barco e que acabou por se revelar importantíssimo quando perdi o mastro: Existem duas soluções muito utilizadas para apoiar o mastro. Numa o mastro desce para o interior do barco e vai apoiar-se sobre a quilha. Noutra o mastro fica apoiado ao nível do convés, num suporte ou num tubo que transmite o esforço para a quilha ou numa antepara que o dispersa mais para a estrutura do barco. O “Hemingway” tem uma solução mista que considero boa, pois apoia o mastro sobre o convés, numa antepara que envolve o barco e ainda apoia numa peça de madeira que vai até à quilha. Se ele tivesse o mastro a entrar para o interior do barco, quando o perdi teria certamente tido danos muito importantes no convés e assim quando me chegou o mastro novo da fábrica foi só pô-lo no seu lugar.

Voltando a falar de equipamento, sobredimensionei um pouco no piloto automático. Optei pelo “Autohelm 6000”, mesmo sabendo que os modelos abaixo seriam suficientes. Pensei que escolhendo mais forte ele trabalharia sempre mais folgado e portanto teria menos desgastes. Como a diferença de preço não era nada por aí fora… O facto é que ele já tem mais de 35.0000 milhas e continua a funcionar perfeitamente, sem nunca me ter dado qualquer problema.

-Não levava nenhum de reserva? Para navegar em solitário é um meio auxiliar muito importante e, pela experiência de um amigo nosso, o Hildeberto Luís, que viu dois avariados na mesma viagem, eu para uma viagem dessas levaria pelo menos três…

-Não, só levava aquele e a única reserva que tinha era o facto de em vez de ser um 2000 ser um 6000!

-Não fico lá muito convencido…mas vamos em frente no aspecto do equipamento. Fale-nos dos restantes equipamentos que considerou necessários e escolheu para levar na sua viagem?

-No que respeita ás comunicações tinha o VHF habitual e um HF, um “Icom 735” com 150W de potência de saída que foi o que me manteve mais ligado ao mundo e em especial a vocês por cá, pois era através dele e do amigo Mourinho que ia recebendo notícias da nossa terra e podendo contar as peripécias da viagem.

Para a recepção da meteorologia, para além dos rádios que me permitiam a recepção em áudio, levava um “Navtex”, Weather Fax e, claro, contactos quase diários com o Altino na “Roda dos Navegantes”

Para segurança minha e dos outros (a que me preocupava mais era a minha…), levava um radar com um alcance de 24 milhas e um respondedor de radar, que para aqueles que não conhecem, é um aparelho que fica ligado em permanência e que permite que o meu barco seja detectado por outro num raio de cerca de 18 a 20 milhas.

-Não passou nenhum susto ao navegar em rotas comerciais?

-Não, até porque me afastei logo que possível delas. Sempre procurei mar aberto, sempre que saía de um porto afastava-me da costa e das rotas mais frequentadas. Preocupava-me sobretudo a navegação costeira, difícil de detectar, ás vezes sem luzes e sem cuidado. Em alguns casos, como por exemplo na costa de África, é um desatino...

E há a temer alguma pirataria que ainda existe…

-Exactamente. No mar das Caraíbas, naveguei sempre alto, o mais que me aproximei de terra foi a cerca de 70 milhas, na costa Norte da Colômbia .A essas distâncias já praticamente só encontramos petroleiros e outros navios de grande porte. Voltando ao respondedor, para mim foi uma grande ajuda em termos de segurança, sobretudo porque estava em solitário e tinha de descansar. Cheguei a ver de noite (pois estava já a segui-los pelo meu radar), quando estava em rumo de possível colisão com, eles começarem a desviar-se, pois a potência do sinal que lhes chegava é muito maior que o fraco eco de um iate e, assim, ficavam sem saber se eu era algum submarino ou outro do tamanho deles e tratavam de se desviar, embora eu também estivesse sempre pronto para lhes dar passagem livre, até porque eles eram muitíssimo maiores que eu.

Tenho também instalada uma sonda digital com alcance de cerca de 150m, que me ajudou muito nas entradas em portos e em passagens baixas que temos mesmo de fazer, sobretudo no Pacífico. Quem, por exemplo, entra nas Fiji, pode navegar vários dias sempre em águas pouco profundas…O Estreito de Torres, no Norte da Austrália é outra zona complicada onde tive de me socorrer bastante da sonda…

-E quanto a sistemas de navegação propriamente ditos, recorreu sobretudo ao G.P.S.?

-Sim, hoje em dia é a maneira mais fácil e segura de navegação, tinha nada menos que três equipamentos desses a bordo: dois ligados à alimentação eléctrica do barco e um pequeno, a pilhas, como última reserva.

Tinha ainda um computador portátil a bordo, com cartografia digitalizada de todo o mundo e este estava interligado com o G.P.S. Este sistema veio, em todos os aspectos, simplificar extraordinariamente a navegação e aumentar a segurança e isso é particularmente importante na navegação costeira nocturna, pois sabemos sempre onde estamos com muita certeza.

Cheguei a passar em lugares em que barcos à vela correriam grandes riscos e dificilmente se aventurariam a passar se não dispusessem deste sistema.

Utilizei cartografia inglesa, que para mim é de excelente qualidade.

-De que proveniência? Para além da minha curiosidade profissional, também acho que pode ser um pormenor importante para os leitores/marinheiros desta revista…

-São cartas do Almirantado Inglês e são comercializadas em CD. São mesmo muito boas e é fundamental navegar com cartas e equipamentos de qualidade. Aí não pode haver compromissos de preços. Eu nunca me sentiria seguro, nem me atreveria a entrar em Port Louis, nas Maurícias, se não tivesse uma carta de aproximação de confiança. O mesmo se pode dizer na Samoa, onde é impossível para quem não seja de lá entrar no porto de Pago Pago, pois somos confrontados com baixios, correntes e destroços de navios afundados nem sempre sinalizados… e isto apenas para citar dois casos de entre muitos.

Foi um dos aspectos em que me preparei com mais cuidado. Levei centenas de cartas e, para além da cartografia de grandes escalas para navegação ao largo, tinha a bordo cartas de aproximação a todos os portos que pretendia visitar e várias alternativas a esses, pois nem sempre as circunstâncias nos deixam fazer tudo aquilo que planeamos. Temos que contar com possíveis problemas, não só a bordo, mas também em terra que nos possam obrigar ou aconselhar a alterar escalas previstas.

Para além da cartografia em formato digital tinha ainda uma boa quantidade de cartas clássicas, em papel, pois que não estava livre de ter uma avaria no computador e tinha de manter a capacidade de navegar com segurança.

-Foi uma viagem que levou muito tempo a preparar…

-Sim, vários anos. Foi preciso ler muito, perguntar muita coisa e a muita gente…e, já em 98, quando o Bardiaux voltou a passar por cá, voltei a tentar esclarecer algumas das dúvidas que ainda tinha, perguntar tudo o que na altura me veio à cabeça e que achei importante esclarecer… como eram os portos por onde ele tinha andado, como se comportava o Índico, pois que já o sabia problemático…Foi preciso estudar tudo muito bem, escolher com muito cuidado o percurso e as escalas alternativas…

Gastei muito tempo mesmo, mas só assim é que me foi possível chegar ao fim… uma viagem destas não é brincadeira nenhuma!

-Porquê em solitário?

-Á partida, e até por uma questão de segurança, porque já ando no mar há muitos anos e já vi muita coisa, eu não pensava fazer esta viagem em solitário. No entanto, preparei o meu barco todo de forma a poder manobrá-lo sozinho, de forma a nunca precisar de ficar dependente de quem quer que fosse. Comecei a falar desta viagem a todos os meus companheiros há muitos anos, ainda no tempo da “Guernica” e desde essa altura que o Rogério mostrava interesse em ir comigo, dizendo que quando eu fosse não me esquecesse dele, pois gostaria muito de ir comigo…

Assim, como ele era um companheiro meu desde o tempo da “Guernica”, julguei ser a pessoa indicada. Só que isso não se confirmou.

Não basta gostar para fazer uma viagem destas, é preciso levar as coisas muito a sério…

Para se perceber melhor o que quero dizer, basta referir que a primeira coisa que eu fazia quando chegava a um porto era tratar do meu barco: limpá-lo, arrumar tudo, ver o que faltava ou era preciso fazer em termos de afinação e manutenção… enfim, aprontá-lo completamente. Se no dia seguinte fosse necessário partir por uma razão qualquer o barco tinha de estar pronto para isso, abastecido de tudo e nas melhores condições possíveis para seguir viagem. Isso era para mim vital…e só depois disso tudo resolvido é que, se houvesse tempo, se descansava ou se passeava…

Quando, nas Caraíbas fiquei sozinho, não tive qualquer dificuldade…Estava mesmo sozinho e disse para mim próprio “Agora sigo sozinho!”.

Como felizmente tinha preparado o barco para navegar em solitário, toca a andar…

Ainda fiz uma espécie de balanço mas, em primeiro lugar, vi que afinal aquela era “a minha viagem”, e que, afinal, o meu companheiro nada tinha a ver com ela…

Eu tinha um objectivo e ele não.

-Não teve ofertas de tripulantes?

Sim, mesmo muitas…

-Toda a gente queria vir consigo?

-Se quisesse ter chegado aqui com o barco cheio…

…Cheio de Havaianas?

 

-O maior período que passei em terra foi em Durban, à espera do mastro mas, apesar de as outras escalas terem sido curtas... quando chegava a outro porto havia sempre telefonemas…e no Brasil a mesma coisa… Mas o importante é nunca perdermos de vista os nossos objectivos… mesmo quando um tal de “Cupido” nos tenta influenciar… e já agora, sempre fui do tipo selectivo, prefiro a qualidade à quantidade.

- Vamos voltar a outro aspectos mais práticos que, embora se calhar menos interessantes, julgo também serem importantes. Por exemplo saúde. Preveniu-se certamente, face ao cuidado com que preparou a viagem no que diz respeito a vacinas, farmácia de bordo, etc….

-Sim, é claro. Tinha todas as vacinas em dia. Para além da do tétano, tomei ainda contra a hepatite e a febre-amarela e na farmácia de bordo, para além dos medicamentos de uso habitual, tinha comprimidos para a malária… Em cada porto onde chegava perguntava sempre se havia algum alerta sanitário ou alguma doença em relação à qual me tivesse que prevenir, mas nunca tive problemas…

-Esteve doente nalguma altura da viagem, teve algum acidente?

-Tive um pequeno acidente, mas nada de especial. Foi até em terra, em Fortaleza… uma pequena febre em Taiti e de resto tudo bem.

-No que respeita a autonomia, em termos de alimentação e de combustível, pois que o Hemingway, apesar de ser um barco essencialmente à vela, se não houver vento fica parado ou quase, como aconteceu quando perdeu o mastro. Como se preparou neste aspecto para etapas que chegaram a ultrapassar as 4 mil milhas?

-Quanto à autonomia em combustível apontei para 1200 milhas. Ao estudar os meus percursos e os consumos do motor concluí que, se tivesse gasóleo a bordo para pelo menos 1000 milhas, muito dificilmente iria ficar mal, mesmo que tivesse problemas com as velas ou o vento faltasse por muito tempo.

Quanto à alimentação, havia sempre víveres suficientes para 5 meses, sem contar com o peixe que ia pescando. Água, também a suficiente para meses e sempre de boa qualidade. Aqui também importa referir que a lona que me servia de toldo de protecção do sol quente dos trópicos e que cobria parte da popa também me servia para recolha de água da chuva.

-E faltou vento? Conseguiu passar bem as habituais calmarias equatoriais?

-Ao contrário daquilo que seria de esperar, até passei a região equatorial quase sempre com vento. Devo ter feito nessa zona apenas umas seis horas a motor. No Pacífico, aí sim apanhei alguns dias de calmaria, sobretudo no trajecto entre o Panamá e as Galápagos. Nessa zona ou não havia mesmo vento ou o que havia era demasiado fraco e variável para se conseguir andar decentemente.

Das Galápagos para as Marquesas também o vento foi escasso em muitas alturas e andei uns bons bocados a motor.

-O motor, portou-se sempre bem?

-Sim, nunca me deu problemas, apesar de já ter cerca de 2000 horas de trabalho (não são só desta viagem, mas as totais, incluindo a viagem do continente para cá e o uso nas voltas que por cá dei antes de sair para esta viagem). Importa ainda notar que sempre o tratei com todos os cuidados, pois deve estar sempre na melhor condição possível.

É fundamental ter a certeza de que ele arranca mal lhe virar-mos a chave e funciona bem quando precisamos dele. Tinha também comigo as peças fundamentais para pequenas reparações que possam ser feitas a bordo como correias, filtros, rotores para a bomba da água e também sabia como fazê-las em caso de necessidade…

-Isto leva-nos ás ferramentas. Para além dos conjuntos habituais, algumas em, especial?

Nada de muito especial: um jogo de chaves de luneta, chaves boca de grilo, chaves de fendas, chave de grifos, chaves para apertar e desapertar filtros, chaves de cruzeta de várias dimensões. É importante ter a bordo um ferro de soldar pequeno a 12, 24 ou a 220volts, desde que se tenha um bom conversor de 12 para 220 volts, e que também é muito útil a bordo. Ah, usei sempre o computador ligado directamente a 12Volts, como já fazia na “Guernica”, e funcionou sempre muito bem.

Outro “acessório” que levei e que se revelou muito importante foi cabo de aço. Encontrei muitos sítios onde, para amarrar o barco a terra, era difícil. Aconteceu por exemplo em Pago Pago... Lá, nem sitio para amarar havia e nessas situações é preciso amarrar a qualquer coisa, uma pedra ou coisa do género. Uma espécie de estropo em cabo de aço dá muito jeito, pois não há o perigo de ser cortado pela fricção, por uma simples navalha de alguém mal intencionado ou mesmo de miudagem. Isso foi uma das coisas aprendidas na minha vida da pesca…

-O gosto e a ligação profissional que estabeleceu por opção de vida com o mar desde muito novo foram-lhe certamente dando um manancial de conhecimentos adquiridos com base na sua própria experiência e na de outros verdadeiros marinheiros. Até que ponto e que importância tiveram esses conhecimentos na preparação e realização da sua viagem?

 Esse conhecimento foi mais que importante, eu considero-o mesmo vital. Uma boa parte das coisas materiais e da instrumentação que foram para o Hemingway transitaram da pesca… Foi lá que tive o primeiro contacto com elas e aprendi a usá-las, em situações e em condições por vezes adversas.

 A experiência em termos de atitude e o conhecimento dos meus limites na minha relação com o mar também vem toda daí…

Para que se perceba melhor o que quero dizer é importante falar aqui do episódio e das consequências da perca do mastro, no Índico. Nem é preciso dizer que, para o ter perdido estava mau…Muito mau tempo mesmo!

Acredite quem quiser, mas eu consegui safar-me com base na experiência que tinha de muitos anos de vida no mar e da calma e sangue frio que já tinha adquirido quando tive de enfrentar outras emergências, embora menos graves.

Acredito que qualquer individuo menos preparado a enfrentar situações difíceis num ambiente hostil como o que se vive no mar debaixo de mau tempo, poderia facilmente perder a cabeça e até mesmo o barco e a vida…

-Quais eram de facto as condições de tempo que enfrentava nessa altura?

-Estava muito vento e, quando se aproximava um aguaceiro, as rajadas eram mesmo muito fortes. Chegavam pelo menos aos cinquenta nós e ali a ondulação anda sempre à volta de 3 /4 metros e naquela altura estava a mais…

-E em que circunstâncias é que aconteceu a perda do mastro? Estava dentro do barco?

-Sim, na altura estava lá dentro a descansar um pouco, porque já tinha necessidade disso…

-O que sucedeu então? Golpe de vento, vaga anormal ou apenas fadiga de material do próprio aparelho?

-Fadiga não, pois tudo era praticamente novo. Eu tinha revisto e afinado tudo pouco tempo antes, quando tinha varado o barco em Darwin, na Austrália, porque já sabia que a travessia do Índico poderia não ser pêra doce…

Tinha verificado tudo, os cabos do leme, os brandais, as inserções, revisto o motor e o piloto automático, etc. e estava tudo bem.

- Foi então apanhado de surpresa pela tempestade? A cobertura meteorológica seria menos fiável para aquela zona onde navegava?

-Não houve surpresa. Eu sabia que a tempestade vinha e não pude evitá-la. Já estava debaixo dela há quase 3 dias, e ao leme há dois dias ao leme…Era de madrugada, estava todo molhado… O tempo parecia querer amainar, pois o vento já andava só nos 15/20 nós e o céu estava mais claro. Não se viam em aproximação aquelas nuvens escuras que faziam o vento disparar acima dos cinquenta nós e deixar o mar todo branco.

Decidi então ir mudar de roupa e deitar-me um pouco, pois já sentia muita necessidade de descansar um bocado…

 Veio então um aguaceiro (o que já não acontecia há muitas horas) e foi nessa altura que o barco, debaixo do vento, deve ter corrido numa vaga grande e guinou totalmente para bombordo, perdendo completamente o andamento. Apercebi-me claramente, por instinto talvez, que qualquer coisa de anormal ia acontecer… Vem logo a seguir uma vaga (que deve ter sido uma coisa enorme), com uma ventania do diabo, pois por azar estava a passar um aguaceiro ou uma nuvem nessa altura, e o barco adornou todo para estibordo, indo com o mastro à água. A “adornadela” foi de tal modo que eu estava no meu beliche e fiquei enfiado no outro lado quase sem poder sair de lá para fora com a cabeça para baixo e os pés para cima… Foi um bocado mal passado……….o que vale é que para todos os efeitos, foram só alguns segundos!

Então o barco endireitou-se e senti logo que já não tinha mastro, pois havia qualquer coisa partida contra a borda…

-Alicate corta cabos e ala fora…

-Não, o alicate corta cabos não me servia naquela altura…Eu tinha previsto que me poderia acontecer uma situação daquelas e tinha estudado bem aquele sistema de fixação dos brandais. Tinha chegado à conclusão que para o utilizar precisaria das duas mãos ocupadas e ficaria sem nenhuma para me segurar… Debaixo de mar o que tens de estar primeiro é sempre bem seguro! O mais importante era safar os cabos e a forma mais simples, rápida e mais segura é sacar as cavilhas que seguravam os brandais e foi o que fiz: segurei uma faca na boca, saquei os prisioneiros das cavilhas e tirei-as, soltando os brandais e cortei os outros cabos, as adriças e as escotas.

A minha grande preocupação era evitar que o mastro arrombasse o barco e que ele ou os cabos me danificassem o leme ou o hélice, pois que só com a queda do mastro o barco não tinha sofrido nada. Agora se ficava naquela altura sem manobra era uma situação muito difícil e não sei como ia ser…

-Se as coisas se complicassem ao ponto de não haver outra hipótese, havia sempre a rádio-baliza e a balsa…

-Não, a minha ideia nunca foi abandonar o “Hemingway”! Nem pensar nisso... ali estava o sonho da minha vida toda…não saía dali…! Havia de, se pudesse, tentar resolver o problema da melhor maneira possível mas…não saía dali!

Até porque sempre acreditei numa coisa que a vida  e o mar me ensinaram e é que, seja no que for, depois da tempestade, vem sempre a bonança. Em todas as situações difíceis ou complicadas da vida, pensei sempre: aguenta aí que, depois do mau vem sempre o bom tempo e o que há a fazer é aguentar com a cabeça fria, tentar resolver a coisa da melhor maneira e esperar que acalme. Nada de precipitações pois as precipitações quase sempre dão mau resultado…

-Foi certamente o pior momento da viagem para si mas, para mim, um dos melhores desta conversa em termos de lição de atitude. E depois?

-Depois, a situação ficou controlada e foi aguentar até ao tempo acalmar. Para teres uma ideia do tempo, a depressão que me apanhou afundou dois barcos que estavam abrigados nas Ilhas Christmas e danificou mais uns quantos… E estas ilhas ficavam um bocado mais a norte da minha posição, mais afastadas portanto desta tempestade que, pelo que apanhei através das estações meteorológicas de Darwin e de Taipé estava estacionária e a cavar, numa situação que a levaria facilmente a evoluir para ciclone…mas depois começou a deslocar-se para nordeste e aliviou para mim, pois eu ia-me afastando para Oeste.

O mar e o vento acalmaram então, e tratei de improvisar uma vela com o pau de spi.

Correu-me bem, pois os ventos ali são naquela altura do ano quase sempre favoráveis, entre leste e sueste, e a corrente é estável e também favorável, de cerca de um nó.

Foi ir andando…e 11 dias depois, chegava à Ilha de Rodriguez, com o Hemingway meio coxo, mas vivo!

 Aí tratei de improvisar um mastro e o único material disponível foi o bambu, pequeno mas também a vela de reserva era pequena pois as outras tinham andado com o mastro (o enrolador é muito bom, mas naquelas ocasiões não dá para tirar a vela, vai tudo…). Foi com esse mastro de bambu que naveguei até La Reunion, passando ainda pela Maurícia.

Aí já consegui uma aparelhação mais “decente”: Arranjei um tubo zincado de três polegadas também pequeno, mas já melhor para me meter a uma etapa de, salvo erro, 1300 milhas até Durban, passando a sul de Madagáscar, o que também não é propriamente uma brincadeira. É uma zona que, embora de corrente favorável, é também muito visitada por frentes e depressões em sentido contrário.

Com a passagem de uma frente e com mar ao vento, como costumamos dizer, já estás a ver o mar que se levanta e isso é perigoso também, e tanto os livros como os conhecedores aconselham a que se passe sempre a mais de cem milhas da costa e eu tive de passar a 20 milhas, para me poder abrigar se tivesse problemas,

Como também tinha uma boa previsão meteorológica, resolvi arriscar assim e foi um luxo, foi um tal andar e cheguei a Durban sem problemas.

De notar, para os nossos homens que resolvam ir para essas bandas, que neste momento a África do Sul só disponibiliza previsões meteorológicas para 12 horas e não mais que isso, talvez porque se trate de uma zona muito instável...Não sei se será assim no futuro, mas previsões para maiores períodos só de outras fontes.

Com o barco reaparelhado, saí então de Durban com rumo a Port Elizabeth, aonde cheguei sem qualquer dificuldade.

Daí parti para Mossel Bay, e seguidamente para Cape Town, sempre sem quaisquer problemas. Calculava as minhas saídas de modo a evitar sair com situação meteorológica desfavorável, aguardando por vezes um ou dois dias para que passasse alguma frente.

O Atlântico Sul foi a zona mais agradável por onde passei. Apanhei sempre ventos favoráveis, sem grande ondulação nem ventos fortes…

-Falámos há pouco daquele que terá sido o pior momento da sua viagem.Agora vamos à parte boa.Excluíndo a chegada, quais os melhores momentos que viveu nestes dois anos?

-É uma pergunta difícil, porque tive imensos momentos bons. Encontrei gente maravilhosa no Pacífico e estive em lugares lindos, que nunca esquecerei... No Índico a mesma coisa. Na Africa do Sul tive uma recepção extraordinária e aproveito para referir o seguinte: Enquanto eu e o “Hemingway” permanecemos em Mossel Bay, no Yacht Club local esteve sempre hasteada a bandeira dos Açores ao lado da bandeira da Africa do Sul.

Quando lá cheguei procuraram-me imediatamente e pediram-me a bandeira portuguesa. Respondi que, embora português, sou também açoriano. Ao verem a bandeira dos Açores à popa do barco perguntaram-me se tinha mais alguma. Como ainda tinha mais duas, cedi-lhes uma que, como disse, foi de imediato hasteada. Encontra-se agora na sede do clube, assinalando a passagem do Hemingway por aquelas paragens…

Tenho muitas outras boas recordações. Encontrei muitas pessoas maravilhosas por esse mundo fora e fui sempre bem recebido por onde passei…

-Fez muitos amigos?

-Fiz, e bons! Olha, ainda antes de chegar aqui, já a família tinha recebido vários telefonemas a perguntar por mim…

-Não terá sido difícil…ao conhecerem a sua viagem, esse facto despertou certamente o interesse e o respeito de quem gosta do iatismo e o Genuíno, ao dar uma volta ao mundo em solitário entrou para um restrito grupo de grandes velejadores. Apesar de já vários terem feito tal viagem, continuam a ser poucos à escala mundial. Esse facto facilita a aproximação entre verdadeiros marinheiros, independentemente dos portos ou das línguas…

-Já que estamos a falar de aproximação e de línguas, há um aspecto que gostaria de salientar. Em todos os lugares por onde passei, procurei sempre o pessoal ligado à pesca e tenho deles as melhores recordações. Convivi imenso com os pescadores, desde os das canoas a remos da polinésia aos de Fortaleza no Brasil…

Foram todos muitíssimo hospitaleiros e acabámos por conversar, partilhámos experiências, mostrei-lhes fotografias das espécies que pescamos aqui nos Açores e alguns dos aparelhos que levava a bordo…

Chego à conclusão que acabamos por falar todos a mesma língua…há uma língua que une toda a gente que anda no mar!

-Foi uma viagem um pouco em contra relógio…não seria de esperar que, navegando em solitário e sem nada de inadiável por estes lados, fosse ficando mais tempo nos sítios que lhe agradassem mais?

-Havia um certo compromisso da minha parte em relação ás pessoas que tinham acreditado em mim…

Quando comprei o barco e disse ás pessoas que ia fazer esta viagem, nem todos acreditavam muito…uma excepção que quero salientar aqui é a do José Decq Mota, que sempre acreditou… e  ás poucas pessoas que estavam em cima do cais quando parti em Outubro de 2000 e que acreditavam, que tinham a certeza de que eu iria fazer a viagem eu disse: - Esperem por mim, que eu estou aqui em Maio de 2002!

E, em Maio de 2002 eu estou de volta…

Já tinha uma ideia bastante precisa do que iria encontrar, falava das Maurícias quase como se já estivesse lá estado…, sabia com alguma certeza o tempo que iria demorar…

A partir de determinada altura comecei a ver que poderia conseguir fazer duas coisas: uma, a viagem de circum-navegação e, se calhar, ainda outra coisa… Foi nessa altura que pedi ao Mourinho para saber quanto tempo tinha levado o Martins a fazer com o “Casvic” a volta ao mundo. Ao saber a duração da viagem dele disse para mim que a conseguiria fazer em menos tempo e,  de facto consegui-o.

Note-se que não estava a competir com ninguém… eu ainda poderia fazer a viagem, mesmo em ritmo de passeio, em menos dois meses. Foi a minha paragem forçada na África do Sul que me atrasou, pois estava pensando parar lá um mês e acabei por ficar três à espera do mastro. Isso levou-me mesmo a retirar da viagem algumas das escalas que tinha previsto em Madagáscar…

-Quais aquelas paragens que considerava essencial fazer na sua viagem e porque razões?

-O porto em que eu fazia ponto de honra em passar era Mossel Bay e por razões, para mim especiais: Em 1985 ou 86, quando saiu a réplica da caravela Bartolomeu Dias da Torre de Belém, em Lisboa, eu estava lá. Assisti à sua partida e marquei como ponto de passagem Mossel Bay. Assim, fui lá vê-la. Encontra-se num museu construído especificamente para ela e que tem o seu nome.

Passei depois por Santa Helena que, por curiosidade, ficava a precisamente 3500 milhas do meu ponto de referência, ali fora do Monte da Guia. Este foi o meu primeiro “way point”, já dos tempos da pesca e, desde essa altura, foi sempre a minha referência para toda a navegação.

-Em algum momento se arrependeu de se ter metido a esta aventura?

-Não, nunca! De forma nenhuma! Eu nunca me poderia arrepender nem nunca poderia voltar para traz…

Dei uma vez uma entrevista, quando estava em Guadalupe, a uma estação de televisão do Quebeque, Canadá. Na altura perguntaram-me mais ou menos isso, se eu apesar de toda a minha vontade em fazer a viagem, voltaria para trás se me acontecesse algum problema. A minha resposta na altura e que mantenho agora (e eu ainda estava na primeira parte da viagem…) era de que iria completá-la e, se não conseguisse chegar à vela, chegaria a remos…Estava completamente fora de questão voltar para trás e acabou por correr tudo bem…

-Pensa voltar a fazer uma grande viagem?

-Sim, sem dúvida, mas ainda não sei quando poderei fazê-la…

Desta vez irei em puro recreio e sem datas pré-combinadas.

Quero voltar a Cabo Verde, passar por Cuba… e por muitos outros lugares…

-Em solitário?

-Não, não volto a fazer nenhuma grande em solitário…

-Companheiro ou companheira?

-Uhmm… talvez companheira…Claro!!!

-Percebido. No “Hemingway”?

-Talvez sim, talvez não…

-Pensa comprar outro barco?

-Se me for possível. Nas minhas pesquisas houve dois barcos que, pelas suas características, gostaria de poder vir a comprar. Em fibra, um barco americano, a marca é “Island Packet”, penso eu.

Em alternativa um “Garcia”, em alumínio. É do género do “Ovni”, mas de construção ainda melhor… mas são barcos caros!

-E o “Hemingway”?

-Nunca me separarei dele e, se um dia tiver de o fazer, só por uma razão de força maior…

-Esta conversa já, com mais de uma hora de gravação, vai provavelmente ser excessivamente grande para o espaço disponível na revista…resta-me agradecer ao Genuíno em nome do Clube Naval e em meu próprio, pois foi uma conversa óptima para mim e, espero, para os leitores da revista Atlantis Cup. Por falarmos em leitores, e antes de terminar, não pensa colocar em livro as recordações da sua viagem?

-Estou pensando nisso. Tenho muitas anotações e recordações que fui juntando ao longo da viagem e até, desta vez, já tenho alguns apoios prometidos.

-Em jeito de conclusão, quer aqui deixar alguma mensagem aos nossos velejadores e outros leitores desta revista?

- Na vida há que fazer opções! Não há nada mais gratificante que chegar… chegar à conclusão de um objectivo a que voluntariamente nos propusemos… leiam “O Velho e o Mar” de Ernest Hemingway!

Junho 2002

 

Texto gentilmente cedido por  Eduardo Sarmento